domingo, 24 de agosto de 2008

Carta ao pai

Eu escrevo uma carta a meu pai mas já não falo das memórias.
Nem faço hipóteses sobre o que teria sido.
É uma carta-presente.
Sobre os momentos em que me sinto como um relógio que parou
ou como uma porta que nunca fecha.
Sobre os momentos peitoril de janela, se eu não morasse em um arranha-céu.
Sobre uísque em copo baixo e pouco gelo em dias como qualquer outro.
Sobre o elefante que me leva pra passear nos sonhos que eu nunca tive.
Sobre noites em claro em que somos felizes e também sobre noites brancas.
Sobre nuvens carregadas, sobre céu alaranjado e sobre os medos.
Escrevo sobre roupas desconfortáveis e sapatos apertados.
E grito pra ele cada uma das angústias que não quero dividir com ninguém.
Teço discursos sobre tudo e sobre o nada.
Sobre minha forma estranha de cortar batatas.
Sobre o absurdo dos dias e a cumplicidade dos sonhos.
Sobre o escrever, sobre amar, sobre viver.
Revelo minhas impressões sobre a sua partida.
A persistência da falta quando não há mais a primeira dor.
E conto pra ele o que escondo de mim mesma.
Sobre a duração duvidosa da alegria e sobre a decisão de ir embora ou não.
Sobre estar no trampolim a um passo do salto mortal
e sobre o próprio salto que ainda não chegou ao fim...
É sobre isso que escrevo a meu pai.
E por falta de endereço, eu publico aqui.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Melhor de três

"Respondi que gostaria mesmo era de poder um dia afinal escrever uma história que começasse assim: "era uma vez...". Para crianças? perguntaram. Não, para adultos mesmo (...)" Clarice Lispector

Ainda me revira o estômago, disse ela passando o selo na língua pra ressuscitar a cola. Naquele tempo já não se escrevia mais cartas, mas ela insistia que algumas coisas não deviam ser feitas por telefone, muito menos por outros meios mais virtuais. Tinha caminhado até ali carregando seu velho guarda-chuva e vinha contando as cores dos automóveis que apareciam no caminho. Foram 3 cores e suas variações.

Se ele não vem, eu mando por escrito, insistiu. Passou a noite anterior elaborando a carta. Separando delicadamente o que precisava ser dito de todo resto que guardaria pra ela mesma. Colocou tudo no papel. Em palavras claras, gráficos, rabiscos, tinta azul, preta e vermelha. Isso porque a quarta cor da caneta estava falhando. As frases em verde ficaram adiadas pra um dia melhor, se ele viesse.

É como se eu tirasse um peso das costas: carregar comigo o coração alheio é uma tarefa muito árdua. E esparramou sobre o balcão as moedas que tinha na bolsa de bolinhas. Foi contando e separando as pequenas pilhas por valor e formato. Porque conviviam ainda o modelo novo e o antigo. Três reais e trinta centavos.

Alguém tinha que ter a coragem. Entregou tudo na mão da funcionária sorridente. O envelope, as moedas e um segredo: tinha cansado de ser a terça parte.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

POP

alice não mora mais aqui
e tenho saudade
do sorriso do seu gato
do país das maravilhas
e das cartas de amor que ela escrevia

quarta-feira, 4 de junho de 2008

história de amor

acho que
te amo

te amo
pra sempre

te amo
quase sempre

às vezes
eu te amo

te amei
enquanto pude